Chegou o dia…
O dia que partiste para outro lugar e nos deixaste com uma saudade eterna de ti.
Querida Avó, não há palavras que não limitem a tua grandiosidade, o teu amor, a tua sabedoria e humildade.
Foste quem me recebeu neste mundo (enfermeira parteira do meu nascimento) e das pessoas que mais me inspirou durante a vida. O mínimo que podia fazer era acompanhar-te nas últimas semanas para te oferecer o meu amor, presença e gratidão. Ainda assim sinto que saí sempre perto de ti com mais do que dava. Foste uma doadora de amor até ao último momento neste teu papel de Avó, de Mãe, de Mulher, de Ser Humano. Aprendi tanto contigo que nunca consegui transmitir-te o quanto. Sempre foste uma inspiração e personificação do verdadeiro amor, aquele que não julga, não condiciona e não pretende mudar-nos, que nos aceita e, por isso, transforma. Contigo aprendi e construí valores e virtudes do Bem. Não porque andasses a apregoar fosse o que fosse mas porque sempre foste o exemplo personificado deles. Ainda me lembro do teu ensinamento de ouro quando tinha 8 anos: “não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti”. Mas ao observar-te aprendi que o importante é fazer aos outros o que gosto que me façam a mim. Quase tudo o que aprendi contigo observei em ti. Foste sempre um casamento perfeito entre a teoria e a prática, de uma autenticidade e pureza que não se coibiam com ‘o politicamente correto’ ou ‘o que os outros pudessem pensar’ razão pela qual tanta gente te admira e admirou ao longo da tua vida. E, certamente, outros tantos devem ter desejado que não tivesses cruzado o seu caminho. Ou não fosses um espírito livre, dotado de uma natureza selvagem que luta pela verdade, justiça e amor.
Desde pequena, bebia com total interesse tudo o que me transmitias. Sempre tive uma admiração e amor infinitos por ti, Avó. Creio que só neste mês e meio sentiste esse amor de verdade (eras mestre em dar mas péssima aprendiz em receber). Mas não era só a família que beneficiava da tua presença… Não havia gente que se aproximasse de ti que não levasse o coração cheio ou o estômago composto. Sempre deste tudo o que tinhas, apenas pecavas por te esqueceres de ti. Davas o novo e ficavas com o velho. Deste sempre a melhor parte. Nunca tiveste apego a nada material, mas aos ‘teus’ sim (especialmente o teu filho Jorge de quem cuidaste até ele partir) com uma entrega e amor sem fim.
Tocaste o coração de inúmeras pessoas, trouxeste outras tantas ao mundo e até para quem te destratou ou negligenciou, tiveste sempre o coração aberto e um olhar misericordioso. Uma compreensão e aceitação que quase ultrapassa a capacidade humana. Sim, sempre tiveste as tuas qualidades divinas mais enaltecidas do que o comum dos mortais. Sempre viste o Bem em tudo e em todos. És um ser luminoso abençoado que mesmo em momentos difíceis superaste-os como quem resolve um pequeno ‘problema’. Acredito que é assim que Deus atua nos seres iluminados como tu: ajuda-os a superarem as maiores adversidades como se algo de pequeno se tratasse. Neste último mês e meio que o AVC te levou para uma cama de hospital, guardo em mim muitas recordações, conversas, gargalhadas, lágrimas, e partilhas de amor e muita ternura. Nunca perdeste o teu humor e amor, que contrastava com os gemidos e queixumes das colegas de quarto apesar de nenhuma estar em estado tão crítico como tu.
Sabes, chego a sentir… abençoado AVC, que nos fez parar e dedicar a ti. Antes de ele aparecer, só a D.Guida (um exemplo de cuidadora como tu mereceste) beneficiava diariamente da tua presença. Nós (filhos, netos, bisnetos) íamos fazendo visitas pontuais e meio fugazes. Mas o abençoado AVC fez-nos parar e perceber o que de facto importa. E o mais importante foste tu. Por isso, quando tinha que escolher entre ti e trabalho, não tinha dúvidas que eras tu quem mais me merecia. No entanto, não consegui retribuir uma ínfima parte do que fizeste por mim, por todos nós…
Querida Avó, faz tempo que a tua mente te mentia e te atraiçoava, afastando de ti memórias importantes, levando-te, por vezes, a uma parcial desidentificação da tua pessoa; fazendo-te esquecer aptidões e competências (Alzheimer, chamam-lhe). Felizmente nunca te esqueceste de nós. Baralhavas nomes e graus de parentesco mas até nós sem demência por vezes o fazemos. Apesar das habilidades perdidas, o Bem nunca te abandonou porque não era uma aquisição tua mas sim parte integrante de ti. Curiosamente, o AVC trouxe-te uma certa dose de lucidez, ou talvez o intenso amor que recebeste neste tempo…
Enquanto pessoa sempre foste o exemplo mais próximo que conheci de coragem, determinação, força, amor, bondade, humildade, compaixão, aceitação, liberdade, partilha, serviço e dedicação. Uma verdadeira força da natureza! Se representássemos conceitos, simplicidade e generosidade seriam o teu expoente máximo. Dedicaste-te a uma profissão que tanto te realizou e na qual pudeste dar o teu melhor (enfermagem). Empreendeste uma família de três filhos, cinco netos e dois bisnetos. Todos nós nutrimos um amor infinito por ti.
Graças a ti, também pudemos beneficiar dos ensinamentos e sabedoria da Avó Maria (minha trisavó), apesar de ter falecido quando eu já tinha 8 anos, apenas recordo dela a fazer roupinhas para as minhas ‘barriguitas‘ e ‘póneis‘. Já para ti, ela foi a mãe que não reconheceste ter e, por isso, sempre viveu entre nós pela tua boca. Até aos teus últimos dias falaste e choraste com saudades da Avó Maria (tua avó). Disse-te (mas creio que não achaste possível) que a mesma saudade e amor que tens por ela, nós temos por ti. A tua humildade e simplicidade nunca te deixaram ver a importância que sempre tiveste para todos nós.
É assim que não deixamos as pessoas morrer, falando nelas e recordando-as como se continuassem por cá. Tal como fizeste com a avó Maria e como confirmou o padre na cerimónia que marcou o fim da tua estadia terrena e o início de um novo ciclo no teu percurso eterno de vida. Sei que basta pensar em ti e falar-te para te sentir. Na verdade, sinto-te em mim.
Desejo que prossigas o teu caminho e que a tua próxima vida seja muito abundante em amor, paz e que todo o Bem que sempre foste e fizeste te seja retribuído em dobro.
Agora és livre (mais ainda) liberta de um corpo que te aprisionou (neste último mês e meio) e uma mente que te atraiçoou nos últimos anos de vida. Não obstante a tua condição física (paralisia total lateral esquerda), mostraste até ao fim que uma mente livre não depende da liberdade física. Vivias numa espécie de linha atemporal, onde o tempo e espaço pareciam não existir. Uma capacidade que muitos meditadores não conseguem alcançar. Mas tudo mudou a partir do momento que foste presa à cama. Como disseste: “enquanto andava aí de um lado para o outro, andava toda satisfeita. Agora que me prenderam…” Referias-te às enfermeiras que te amarraram à cama os únicos membros saudáveis . Como espírito livre que és não merecias tal tratamento (ninguém merece) e, acredito, por isso, decidiste partir. Desejo com todo o coração que estejas em profunda Paz e Amor. Agora que descalçaste o sapato apertado incómodo de um corpo que não mais te servia e uma mente não digna de ti.
Agora, não és um anjo na terra. Agora, és um anjo no Universo que vive em todos os corações que tocaste durante a tua estadia na terra. Deixas marcas em muitas vidas e em muitos corações. Só um grande Espírito é digno de um grande Coração.
É um privilégio ser tua neta e ter recebido tanta sabedoria de ti.
És o expoente máximo de ‘Amor ao próximo’. Não sendo católica (eu), reconheço que sempre foste a personificação dos ensinamentos cristãos. Lamento apenas a abnegação da tua pessoa em detrimento de todos os outros (um dos aspectos que discordo da Igreja Católica). Acredito que Deus está muito orgulhoso de ti e estás certamente rodeada de Puro Amor.
Até sempre, Avó Fernanda, mulher sábia, cuidadora, selvagem, livre, guerreira e compassiva.
Amor e Gratidão infinitos,
Tua neta,
Dianinha