Como poderíamos nós esquecer os velhos mitos que estão na origem de todos os povos, os mitos de dragões que no último momento se transformam em princesas; porventura, todos os dragões da nossa vida são princesas que apenas esperam ver-nos belos e corajosos por uma vez. (…)
Não tema, por isso, (…) quando diante de si se levanta uma tristeza tão grande como nunca sentiu, quando o desassossego, como a luz e a sombra das nuvens, sobrevoa as suas mãos e todas as suas ações. Tem de pensar que, dentro de si, está a acontecer qualquer coisa, que a vida não o esqueceu e que o carrega na sua mão, e não o deixará cair.
Rainer Maria Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta.
Partilho contigo uma experiência recente e transformadora…
Equanimidade (Uppekkha) e impermanência (Anicha). Foram as palavras de ordem no último retiro. Um retiro de silêncio e total introspecção. Foram 10 dias de silêncio e 100 horas de meditação (é verdade, meditámos 10h/dia). Intenso, transformador, belo, desafiante, extenuante – são alguns adjetivos que poderiam eufemizar esta, que ficará na memória como uma das experiências mais desafiantes a que me propus até ao momento. Talvez não tanto…
A verdade é que o silêncio é muito orgânico para mim e, apesar de não saber na sua plenitude para o que ia (só mesmo passando pela experiência), o meu coração batia em uníssono com a voz interior que me garantia estar onde devia estar.
Mas nunca é como esperamos… Até porque a única coisa que esperava não aconteceu. Ia preparada para um profundo revolvimento emocional que me ajudasse a libertar memórias de acontecimentos nulos de boas intenções e bem querer. Acreditei que fosse o momento da verdadeira catarse emocional que aguardava há alguns anos. Aquela que transmuta todos os resquícios de memórias de dor em amor. Bem, mas isso não aconteceu… não da forma que esperava. Contrariamente ao que desejei, nem uma lágrima derramei. O que não significa que não tenha sido transformador. Foi e de que maneira. Ainda vivo os efeitos do abalo sísmico que se deu no meu interior. Ainda reparo as mossas dos escombros caídos nos que estão mais próximos de mim…
As lágrimas que teimosamente não saíram durante os dias silenciosos vieram com força nos dias posteriores ao regresso a casa e à vida citadina. Adoeci e todo o meu corpo entrou num processo de somatização muito mais prolongado que o tempo médio de cura de uma simples gripe. A dita catarse chegou, não no tempo e moldes esperados mas quando e como tinha que ser. Os efeitos colaterais reverberaram intensamente nas semanas posteriores.
A metamorfose do silêncio nem sempre é silenciosa. É um encontro do EU com o EU. Tem tanto de desafiador como de transformador. Mexe com o mais profundo que há em nós, aflorando a nossa Luz e Sombra. Para que possamos integrá-las num todo e, assim, contactar com a nossa essência: a verdade do coração.
Em pleno contexto montanhoso de Candeleda (Espanha) pude desfrutar da pura beleza da Serra de Gredos. No meio de nenhures onde os barulhos que interpelavam o profundo silêncio eram o chilrear dos pássaros, os chocalhos das cabras e um motor que pontualmente circundava a envolvente. Foram dias de forte comunhão com a natureza. Contemplei o nascer do sol e vi das maiores concentrações de estrelas até ao momento, com uma lua crescente de fundo que atraía o nosso olhar como íman. Mas o retiro começou em plena lua nova, numa simbiose perfeita com a abertura do portal da transformação frisando ainda mais a conexão com o espiritual e a intuição. Reforçando a forte ligação à mãe terra. Foi o momento de libertar corpo e mente de padrões negativos e crenças limitadoras. Uma fase profunda que nos prepara para o renascimento.
Vou lembrar para sempre o forte sentimento de pertença e conexão com a natureza. Foi muito bonito. Um verdadeiro sentir de retorno a casa. A união com o todo. Senti em todas as células a unicidade que somos. Talvez por isso, a primeira semana foi muito mais pacífica do que esperava (exceptuando as dores físicas). Tinha ouvido e lido que os primeiros dias eram os mais desafiantes mas não foi essa experiência que vivi.
Tenho que confessar que nos primeiros dias nem me lembrei das pessoas mais próximas, inclusive, do meu Bicho (o meu gato). Foi um reset absoluto que experienciei com muita gratidão e harmonia.
Depois vieram os dias mais desafiantes que se fizeram sentir fortemente pela dor física (10 horas por dia sentados no chão a meditar é no mínimo desafiante). Mas as dores que afloram não são apenas fruto da excessiva permanência na posição de meditação, são, sobretudo, produto da mente, revelando de forma nua a sua estreita relação com o corpo.
Exageros à parte, posso dizer que senti as maiores dores físicas até à data. O que revela a profundidade da purificação físico-mental e aprimoramento do ‘sentir’. E foi assim que praticámos a equanimidade – a capacidade que nos permite manter a serenidade e ânimo inalterados independentemente das circunstâncias. Quando observamos a dor, tal qual ela se apresenta, sem nos deixarmos afetar, aceitando-a, ela acaba por desaparecer. Assim é na vida. Quando somos equânimes (inabaláveis) e não cedemos ao poder negativo das circunstâncias/pessoas, passamos a ser observadores de nós próprios e da realidade, tal como ela é. Não nos deixando levar pelas forças (tantas vezes destrutivas e desencorajadoras) do que não conseguimos controlar. Controlemos apenas o que está ao nosso alcance: a forma como reagimos a essas mesmas situações/pessoas, sejam agradáveis ou desagradáveis.
Através da aceitação, contactamos com o nosso poder interior, aquele que nos revela que tudo tem uma ordem perfeita. Quando realizamos que não passamos pelas situações de forma gratuita, torna-se fácil desenvolver uma atitude de humildade perante a vida: o que devo aprender com o que me está a acontecer?
A partir do sétimo dia, todo o meu eu começou a borbulhar com os efeitos da lua crescente. Estava em pleno renascimento… Muitas ideias, insights e energia para expandir o meu potencial. Para criar e co-criar. Por isso, a partir da primeira semana foi mais difícil permanecer em silêncio quando tudo em mim pulsava para a ação.
Na viagem de regresso, éramos quatro num carro. Pessoas que acabara de conhecer e falar apenas no 11º dia. A minha veia social parecia que estava adormecida há anos. Falei pelos cotovelos! Mal continha a minha energia.
Olhando para trás, tomo consciência da profundidade desta experiência. É intenso, muito. Mas também (como tudo) depende da forma que o vivemos. É um mergulho dentro do universo que somos.
Lá, perguntei-me algumas vezes porque raio tinha tido a ideia de fazer um retiro Vipassana. O que me passara pela cabeça? – perguntava-me. Cheguei mesmo a pensar avisar a minha família para não me deixar repetir a proeza. Hoje, tenho em mim que foi apenas o primeiro.
Equanimidade, aceitação, paciência são virtudes preciosas para superar a impermanência. Afinal, o caos precede as grandes e profundas mudanças. E quando o momento se tornar bem difícil de superar, lembremos que somos o dragão e a princesa. Somente temos que encontrar a coragem e o amor no nosso coração e ACREDITAR. Quando confiamos no nosso potencial e nos honramos, a vida cuida de nós, colocando tudo e todos no seu devido lugar.
‘Sometimes when things are falling apart they may actually be falling into place.’